quinta-feira, 10 de abril de 2014

QUEBREI IMAGEM DE SANTO - ONZE ANOS DE ATRASO DE VIDA




     Quebrei a imagem de um santo.

     É claro que foi sem propósito. 
     Entramos na Igreja de São Sebastião. Éramos várias meninas vindas de uma brincadeira maravilhosa: "cozinhadinho".
     Algumas senhoras estavam arrumando a Igreja. Fomos olhar a limpeza do altar lateral mais próximo da entrada - o de Santo Antônio. As imagens estavam colocadas no banco ao lado.
     Não sei o porquê, achamos de passar exatamente entre as imagens. Esbarrei em uma delas e foi um caos!  A imagem caiu e se espatifou. Todas, horrorizadas, falavam ao mesmo tempo. Ameacei sair correndo dali. Correr, correr, correr...
     Senti um medo tremendo. E fugir da cena do "crime" foi a única coisa em que pensei.
      As mulheres e as crianças me encurralaram. 
     - Vai chamar o Padre Cordeiro, disse alguém.
     Tremia toda, imaginando as coisas terríveis pelas quais eu poderia passar! Não sei como não me urinei toda de medo.
      O Padre chegou. Eu ali, toda encolhida, prisioneira, cabisbaixa, levei um século para conseguir erguer a cabeça. Meus olhos foram passeando, lentamente, pelos seus pés, por sua batina preta que não acabava nunca e, no alto daquele homem que se tornara gigantesco, encontrei o rosto bondoso do Padre.
       Não me lembro de suas palavras, mas fui liberada.  Já me sentindo sufocada a ponto de explodir, pude respirar livremente.
       Vim para casa com uma vergonha enorme, derrubada, liquidada. Parecia que todos na cidade sabiam do acontecido.
      Estava em companhia de Maria do Dionísio (Dionísio Pires, falecido). Antes de seguir para minha casa, passei na casa dela. Que erro cometi!
      Dona Maria, a mãe da minha amiga, estava ajeitando o coque e conversando com uma visita.
      Maria contou para a mãe o que acontecera.
      As duas senhoras trocaram olhares e veio a sentença que eu assumi e que tornou minha vida um sofrimento:
      - "Quebrar imagem de santo traz onze anos de atraso de vida"!
    


      
      Que ruindade incutir uma ideia assim na cabeça de uma criança!
      Eu contava os dias frequentemente. Meu Deus! Eu tinha só dez anos de idade e carregaria aquela desgraça até os vinte e um! Era um peso muito grande sobre minhas costas.
      E o pior aconteceu: uns meses depois, nossa vida tornou-se  muito difícil. Sei lá quantos anos durou... Foram muitos.
      Pronto. Acreditei na afirmativa de dona Maria. Nem sabia que o nome disto era SUPERSTIÇÃO...
      É desta forma que as pessoas se tornam supersticiosas. Sofrem. E como sofrem!  É uma verdadeira escravidão. 
      Minha sorte é que não cruzei os braços durante este período penoso.
      Senti-me jogada em águas barrentas, pesadas e eu, sem saber nadar, dava braçadas de qualquer maneira querendo encontrar algo em que me agarrar. 
      Embora não tivesse um objetivo definido, lutei com todas minhas forças e até com as que não tinha para sair da dificuldade. E não é que cheguei à outra margem? Por ser difícil, o sabor foi inigualável...
     Alguns anos antes de sua morte, relembrei o fato ao Padre Cordeiro. Não é que ele também se lembrava?!
     - Era a imagem de São Vicente de Paulo, disse-me ele.
     
      Ó São Vicente de Paulo, por que entrou a vez primeira, na minha vida, assim tão tragicamente?
      Quando voltou a fazê-lo, nos meus quarenta e dois anos de idade, aí sim, trouxe-me muita alegria: tornei-me Vicentina.
      Pude conhecer e praticar uma atividade das mais importantes da Igreja Católica - SSVP.
      A base dos Vicentinos, como são conhecidos desde o século XIX, é "oração e ação, sobretudo a promoção do ser humano carente".
     Carente de quê?  Não só de saúde, alimentos, remédios, roupas, mas também de um trabalho, de uma visita, de respeito e, quantas e quantas vezes, carente de ouvidos para escutá-lo...